Dormir num
hotel é bom e sabe bem, já sabíamos isso, mas é mordomia com um
problema: acordar de manhã é muito mais difícil (a caminha, o silêncio e a
privacidade são um vício que nos agarra sem piedade), a saída é muito mais
lenta e acabamos por fazer o percurso quase todo debaixo de um sol escaldante.
Pontevedra é
uma terrinha muito gira. Toda em pedra, está bem estimada e limpa, nada como a
grande parte dos sítios por onde temos passado, o que foi bom para variar. É um
ponto de encontro de peregrinos, pelo que de manhã tem um grande movimento de
mochileiros e táxigrinos - o nome que os mais profissionais da coisa dão à
malta que vai de mãos nos bolsos, aqueles que pagam a alguém para lhes
transportar as malas de destino para destino. Este movimento é intenso logo
deste a bela ponte velha que junta as margens do rio Lérez, onde fizemos
amizade com um super animado e enérgico grupo de seis aveirenses. Claro que
aqui as lebres estavam com o fogo no rabo o que levou os nossos companheiros a
cedo desistirem de nós.
Continuamos
animadas e sozinhas, afinal estavam previstos apenas 21 km, o que era isso para
nós, que vínhamos de um sobrevivo dia de 38? Mas assim que o sol se pôs a pique
não sei se foi da estafa do dia anterior, se foi da exposição ao calor
excessivo resultado da sorna matinal, não sei do que foi mas os meus pés
começaram outra vez a doer, as plantas dos pés, o que nos fez abrandar e foi
motivo de gozo dos aveirenses que depressa nos ultrapassaram.
É uma etapa
com pouca sombra, com bastantes subidas e muito caminho pelo meio de vinhas. A
certa altura entramos num café para comprar água, talvez o único por onde
passamos nesse dia, onde estavam duas peregrinas chinesas a carimbar as
credenciais e eu aproveitei para carimbar as nossas também. Uma delas olha para
a minha, topa o carimbo de um hotel e grita "oh, you been in a hotel? A
hotel?" tão alarmada que, fosse o caso de eu não entender o inglês
macarronico, ainda teria julgado que ela me estava a avisar que tinha uma
víbora a descer-me pelo pescoço. Sim, um hotel, qual é o mal?
Também quase
não há fontes neste percurso. E estava tudo tão seco! Todos os ribeiros e
riachos, tudo seco. Verdade seja dita que de resto estava tudo absolutamente
impecável: água fresca nas garrafas, paisagem bonita, mochila super, bolhas
zero, chapéu cinco estrelas, mãos magrinhas. Tudo menos os meus pés. Oh os meus
pés, a dor excruciante de caminhar sobre facas, caramba.
Perto de
Caldas de Reis vimos um cartaz a anunciar o Albergue Cruzeiro e recordamos que
o Miguel, o nosso monitor da Serra do Risco, nos tinha dito que ali teríamos de
ficar no Cruzeiro, o albergue municipal é impróprio para consumo, diz ele, nós
não sabemos. Agarro no telefone e, fazendo o melhor uso daquele idioma
universal que é o portunhol, marco um quarto. Era para quatro pessoas, mas não
fazia mal, custava 12€ a cada uma e sempre seria melhor partilhar o espaço com
outros 2 que com outros 22.
Lá chegamos,
eu de rastos, a Inês fresca como se em vez de 23 quilómetros tivesse caminhado
23 passos (mais uma vez ludibriadas pela internet). Por mero acaso fomos
direitas às águas, o sítio onde a tradição manda mergulhar os
pézinhos à chegada, mas a simples visão de vários pares de extremidades
transpiradas, e quiça micóticas, a demolhar no mesmo tanque
fez-nos quase correr para o albergue onde a ausência dos nossos companheiros
nos permitiu uma belíssima e bem mais higiénica banhoca.
Pouco depois
eles chegaram, a Donatella e o Enrico, um casal de pequenos sexagenários
italianos que pareciam dopados. Nós deitadas nas nossas camas, de pernas para o
ar, vaselina a absorver nos pés, sem energia nem para alongar as pálpebras e
eles, mais ela na verdade, num frenesim: lavou roupa, estendeu-a, desmancharam
mochilas, fizeram camas, tomaram um duche e desandaram porta fora. Já nós só
saímos um bom bocado depois. Arrastámos-nos pelo passeio, fomos ao supermercado
e acabamos abancadas primeiro numa esplanada onde bebemos umas cervejas bem
fresquinhas com o Jeremiah, que entretanto apareceu ali sozinho com o seu belo
sorriso e um calcanhar todo deitado abaixo, e a seguir, de novo sozinhas, num
tasco de aspecto duvidoso mas bastante pitoresco onde comemos umas muito boas
tapas acompanhadas de mais umas cañas.
As mesas
corridas facilitam este tipo de interacção e acabamos a partilhar a nossa com
um grupo de cinco divertidos alentejanos de Torres Novas - três rapazes e duas
raparigas. Vinham de Valença, como nós - aleluia! já começávamos a achar que
ninguém partia de tão perto de Santiago como nós.
Regressamos
ao nosso albergue um bocadinho às pressas com receio de acordarmos os nossos
parceiros idosos apenas para constatar que eles ainda não tinham chegado. E já
o fizeram uma boa meia hora depois de nós, os doidos. Conversamos ainda durante
um bocado mas a noitada não os impediu de se levantarem ao toque do nosso
despertador, às 5.30 da manhã (já não íamos arriscar outra caminhada à torreira
do sol, somos parvas ou quê?) frescos e enérgicos como no dia
anterior.
o Caminho e os amigos italianos |