terça-feira, 9 de janeiro de 2018

"Nunca mais te cales!" - 3 histórias sérias na 1ª pessoa.

1 - Tinha 20 anos, estava a tirar o curso e a mesada era curta. Desde os dezasseis que fazia trabalhos pontuais como hospedeira em eventos e aquele foi apenas mais um: estaria na FIL, no stand de uma marca de automóveis de gama alta. O trabalho era das 15h às 24h, o tempo inteiro de pé, uma estafa. No último dia o Diretor de Marketing da marca apareceu perto da hora do jantar - um betinho loiro e simpático com mais uns oito ou dez anos que eu. Como era o último dia antes de irmos embora tínhamos de arrumar o stand e encaixotar tudo o que lá estava. A hora da saída passou. A certa altura ele viu-me apressada porque tinha de ir apanhar o comboio ou só teria outro às 5.30 da manhã. Perguntou-me para onde ia, eu respondi, ele observou que ia na mesma direção e ofereceu-me boleia. Eu aceitei toda contente, estava de rastos.
No caminho, passávamos em frente ao T Club quando ele me comunicou que teria de parar ali por um minuto para falar com uma pessoa, coisa rápida. Eu não gostei da ideia, mas também não achei que fosse grave, ainda assim chegaria a casa mais cedo do que o normal. Entramos e ele dirigiu-se a uma mesa num canto, sentou-se e convidou-me a sentar-me ao lado dele - estava à espera da pessoa, disse. Eu puxei um banco, sentei-me muito hirta na ponta da mesa e, desconfortável, sem saber bem o que fazer, esperei. Ele pediu um whiskey, eu não quis nada. O sítio estava quase vazio e eu não tirava os olhos da entrada, mas não aparecia ninguém. Quase não falei, mas ele não se calava a falar de si mesmo, das suas conquistas profissionais e desportivas. A certa altura ele chegou-se para a frente e meteu a mão na minha perna, casualmente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Eu levantei-me de um salto, balbuciei qualquer coisa sobre ir à casa de banho e fui quase a correr. Eu tinha o passe, mas não havia mais comboios e na carteira não tinha um tostão. Fui ter com a senhora que estava de serviço nos lavabos, a dar o papel higiénico, expliquei-lhe o que se passava e pedi se me dava uma moeda para usar o telefone, naquela altura ainda não havia telemóveis. Ela foi muito querida e deu. Liguei para casa de um amigo e pedi-lhe para me ir buscar. Enquanto ele não chegou não saí da casa de banho e assim que ele apareceu fugi dali a correr.
Não voltei a ser contactada para trabalhar para aquela marca.
2 – Decidi então procurar um estágio remunerado, ainda que pouco. Pedi transferência para o curso noturno e uns meses depois encontrei o que procurava na área de publicidade de uma revista.
Tinha uma diretora muito simpática e disponível que me levava a todas as reuniões e nunca levantava obstáculos à minha hora de saída porque tinha de ir para as aulas. Eu estava a aprender e a gostar, assim passaram 3 meses.
O Diretor do jornal do qual a revista era o suplemento tinha um gabinete envidraçado que ficava de frente para a minha mesa. Além dos bons dias nunca troquei mais uma palavra que fosse com ele. Até à manhã em que ele me chamou ao seu gabinete. E eu fui, claro.
Ele não se levantou quando eu entrei nem me convidou a sentar, de maneira que eu fiquei de pé de um lado a secretária e ele recostado na sua cadeira, do outro.
Perguntou-me se eu estava a gostar do trabalho, eu respondi que sim. Ele perguntou se eu estaria interessada em fazer mais alguma coisa, em ter mais responsabilidade. Eu respondi que estava a estudar, se a função fosse compatível, claro que sim. Ele observou que isso só dependia da minha vontade, que antes de me dizer do que se tratava teríamos de almoçar juntos para ele me conhecer melhor. Sem compreender quais as intenções do homem e recusando-me a cair na mesma esparrela outra vez, disse-lhe que responderia ali mesmo ao que ele perguntasse, não seria necessário almoçarmos. Ele respondeu que naquele momento não tinha tempo, mas depois então falávamos. No dia seguinte de manhã a minha diretora agradeceu muito, mas já não iam necessitar mais dos meus serviços.
3 – Meses mais tarde, como já frequentava o turno da noite, arranjei através de um professor um emprego em part time durante o dia, coisa mais séria, de pessoa crescida. Era perto de casa, num escritório que importava camisas italianas e as distribuía para lojas. Eramos 4: outras duas raparigas, eu e o dono, um trintão/quarentinho com a mania que era bom. A minha função era administrativa: atendia telefones, encaminhava os clientes para a sala de reuniões, etc. nada de muito complexo. Ao fim de pouco tempo ele começou a fazer uma coisa altamente incómoda, que me deixava nervosa e irritada: sempre que entrava no escritório acompanhado por alguém (homem) com quem tinha mais confiança vinha “mostrar-me”. Dizia “olha aqui, esta é a minha funcionária mais gira” e coisas do género. Comecei a achar que se não deixasse passar umas destas de vez em quando nunca aguentaria um emprego, por isso ignorava. Não sorria, não respondia, mas não evidenciava desagrado, simplesmente ignorava.
Um certo sábado ele ligou-me para casa de manhã. Nunca antes me tinha telefonado e fiquei apreensiva. Explicou-me que iria a Itália em breve e queria que eu o acompanhasse. Respondi que era administrativa e que havia uma pessoa na empresa cuja função era precisamente escolher as coleções, aliás, era ela que o acompanhava sempre nas viagens precisamente por essa razão. Ele observou que o critério era dele, que era ele quem decidia e que desta vez queria que fosse eu. Eu respondi que não percebia nada de camisas nem de tendências nem de coleções, seria um empecilho, não tinha lógica nenhuma ir com ele. Ele ficou irritado, perguntou sarcástico se o meu namorado não deixava. Eu respondi que o meu namorado não tinha nada que deixar ou deixar de deixar, eu não iria porque era despropositado. Ele desligou-me o telefone.
Na segunda feira liguei a avisar as minhas colegas de que não iria mais.
Todas estas histórias são verídicas, todas elas se passaram comigo. Nunca apresentei queixa, sabia que ninguém me daria crédito - afinal estas coisas estavam (e estão) sempre a acontecer.
Na época não tinha família, não tinha ainda filhos para alimentar, pude dar-me ao luxo de pagar para não saber o que se seguiria. Mas e se a minha história fosse diferente? Se eu fosse o único sustento dos meus filhos? Se algum destes animais fosse uma pessoa poderosa numa industria onde eu ficasse condenada a não tornar a trabalhar? Se eu fosse mais ingénua?
Nunca saberei quais as verdadeiras intenções por detrás de cada uma das atitudes destes homens, mas uma coisa sei: fizeram-me mal, fizeram-me sentir desvalorizada, incompetente e suja. Fizeram-me duvidar de mim própria, das minhas capacidades, do meu talento, do meu esforço, da minha culpa. Esta dúvida permaneceu por muitos anos e afetou bastante a minha vida. Não lhes perdoo. Não lhes perdoarei.
Aos 20 anos calei-me. Estava convencida que tinha feito alguma coisa errada, que aquilo era normal, que não podia fazer nada para me defender. Hoje sei que não. Passaram mais de 20 anos e ainda penso nisto de vez em quando.
A culpa não foi minha. 
A culpa não é tua.
Não te cales. 
Nunca mais te cales!

origem: Google

6 comentários:

  1. Cara amiga, sem segundas intenções. O primeiro texto seu que li, gostei muito. Imaginei-a bem inteligente, jovem, feliz e apreciadora da vida. Nessa altura respondi-lhe da mesma maneira que agora, já há muitos meses, só para lhe dizer o quanto havia gostado da sua maneira de pensar, de ver as coisas, de escrever, do seu humor. A propósito, gostei da sua narrativa sobre o "passeio" até Santiago. Eu sou homem, entre os setenta e os oitenta anos e sou doente de DPOC porque fui burro uma vida inteira e fumei que nem o parvalhão que sou. Bem feito! Mais. Vivo sozinho porque a minha mulher apanhou com Alzheimer e, devido à falta de saúde, tive de a internar num lar. Não pense que me estou a lamuriar, nada disso. Acredito que Deus existe e irá cumprir os desígnios a que se propôs e, quem sabe, talvez um dia volte a encontrar-me com ela num estádio bem diferente para voltarmos a ser felizes e completarmos as nossas existências. Voltando ao seu escrito, devo dar-lhe uma "palmadinha nas costas" amigavelmente pois tendo também sido vítima de assédio, sofreu e tal não é justo. Todas estas histórias acabam por me fazer ter saudades da minha juventude, quando o simples facto de dar a mão a um "borracho" era motivo de festa e de comemoração. Mas já reparou que na actualidade abrimos a televisão, um jornal ou revista, nas esplanadas, seja onde for que estejamos e só tropeçamos em pornografia, em tentações todas com o mesmo sentido? Lamentável este tempo por essas razões e admirável por outras. Quando chegar a minha horinha, vou contente por ter vivido quando tanto progresso cultural surgiu; e por ter assistido ao nascimento de toda a tecnologia actual, principalmente na medicina e na sustentação humana. Mas raios me partam se vou lamentar a porcaria dos maus costumes sociais que infelizmente se enraizaram o se teem como vanguardistas, inovadores. Gosto demasiado das minhas parceiras na Natureza para algum dia me permitir defender algo que não as dignifique. Vocês, mulheres, teem razão de queixa, é verdade. Mas os seres humanos não são todos feitos do mesmo barro. Saudações.

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    1. Obrigada António, as suas palavras deixam-me sempre muito sensibilizada. Espero que os seus desejos se realizem, que reencontre a sua mulher num sitio bonito, de paz. Enquanto isso não acontece um grande beijinho de melhoras.

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  2. Acho que fez o que deveria ter feito. Não ceder. A nossa liberdade tem disto: não lhe pareceu bem, recusou! O mal não está em nós, mas sim em quem assedia. E se um peixe não parece fazer mal a um tubarão quando o tenta enfrentar, um cardume já é capaz de lhe fazer frente. E o cardume tem de ser unido. É não ceder e denunciar. Isto, que descreveu, é assédio e é crime.

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    1. Isso mesmo! O cardume é mais forte, há que não voltar a calar.

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  3. Bom dia, estou fazendo uma pesquisa sobre blogs e gostaria de saber um nome e email de contato do blog.

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    1. Peço desculpa, não tinha visto este comentário... se ainda estiver interessada pode enviar mail para poiseuachoque@gmail.com, sou a Marta. Obrigada pelo interesse.

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