terça-feira, 9 de janeiro de 2018

"Nunca mais te cales!" - 3 histórias sérias na 1ª pessoa.

1 - Tinha 20 anos, estava a tirar o curso e a mesada era curta. Desde os dezasseis que fazia trabalhos pontuais como hospedeira em eventos e aquele foi apenas mais um: estaria na FIL, no stand de uma marca de automóveis de gama alta. O trabalho era das 15h às 24h, o tempo inteiro de pé, uma estafa. No último dia o Diretor de Marketing da marca apareceu perto da hora do jantar - um betinho loiro e simpático com mais uns oito ou dez anos que eu. Como era o último dia antes de irmos embora tínhamos de arrumar o stand e encaixotar tudo o que lá estava. A hora da saída passou. A certa altura ele viu-me apressada porque tinha de ir apanhar o comboio ou só teria outro às 5.30 da manhã. Perguntou-me para onde ia, eu respondi, ele observou que ia na mesma direção e ofereceu-me boleia. Eu aceitei toda contente, estava de rastos.
No caminho, passávamos em frente ao T Club quando ele me comunicou que teria de parar ali por um minuto para falar com uma pessoa, coisa rápida. Eu não gostei da ideia, mas também não achei que fosse grave, ainda assim chegaria a casa mais cedo do que o normal. Entramos e ele dirigiu-se a uma mesa num canto, sentou-se e convidou-me a sentar-me ao lado dele - estava à espera da pessoa, disse. Eu puxei um banco, sentei-me muito hirta na ponta da mesa e, desconfortável, sem saber bem o que fazer, esperei. Ele pediu um whiskey, eu não quis nada. O sítio estava quase vazio e eu não tirava os olhos da entrada, mas não aparecia ninguém. Quase não falei, mas ele não se calava a falar de si mesmo, das suas conquistas profissionais e desportivas. A certa altura ele chegou-se para a frente e meteu a mão na minha perna, casualmente, como se fosse a coisa mais normal do mundo. Eu levantei-me de um salto, balbuciei qualquer coisa sobre ir à casa de banho e fui quase a correr. Eu tinha o passe, mas não havia mais comboios e na carteira não tinha um tostão. Fui ter com a senhora que estava de serviço nos lavabos, a dar o papel higiénico, expliquei-lhe o que se passava e pedi se me dava uma moeda para usar o telefone, naquela altura ainda não havia telemóveis. Ela foi muito querida e deu. Liguei para casa de um amigo e pedi-lhe para me ir buscar. Enquanto ele não chegou não saí da casa de banho e assim que ele apareceu fugi dali a correr.
Não voltei a ser contactada para trabalhar para aquela marca.
2 – Decidi então procurar um estágio remunerado, ainda que pouco. Pedi transferência para o curso noturno e uns meses depois encontrei o que procurava na área de publicidade de uma revista.
Tinha uma diretora muito simpática e disponível que me levava a todas as reuniões e nunca levantava obstáculos à minha hora de saída porque tinha de ir para as aulas. Eu estava a aprender e a gostar, assim passaram 3 meses.
O Diretor do jornal do qual a revista era o suplemento tinha um gabinete envidraçado que ficava de frente para a minha mesa. Além dos bons dias nunca troquei mais uma palavra que fosse com ele. Até à manhã em que ele me chamou ao seu gabinete. E eu fui, claro.
Ele não se levantou quando eu entrei nem me convidou a sentar, de maneira que eu fiquei de pé de um lado a secretária e ele recostado na sua cadeira, do outro.
Perguntou-me se eu estava a gostar do trabalho, eu respondi que sim. Ele perguntou se eu estaria interessada em fazer mais alguma coisa, em ter mais responsabilidade. Eu respondi que estava a estudar, se a função fosse compatível, claro que sim. Ele observou que isso só dependia da minha vontade, que antes de me dizer do que se tratava teríamos de almoçar juntos para ele me conhecer melhor. Sem compreender quais as intenções do homem e recusando-me a cair na mesma esparrela outra vez, disse-lhe que responderia ali mesmo ao que ele perguntasse, não seria necessário almoçarmos. Ele respondeu que naquele momento não tinha tempo, mas depois então falávamos. No dia seguinte de manhã a minha diretora agradeceu muito, mas já não iam necessitar mais dos meus serviços.
3 – Meses mais tarde, como já frequentava o turno da noite, arranjei através de um professor um emprego em part time durante o dia, coisa mais séria, de pessoa crescida. Era perto de casa, num escritório que importava camisas italianas e as distribuía para lojas. Eramos 4: outras duas raparigas, eu e o dono, um trintão/quarentinho com a mania que era bom. A minha função era administrativa: atendia telefones, encaminhava os clientes para a sala de reuniões, etc. nada de muito complexo. Ao fim de pouco tempo ele começou a fazer uma coisa altamente incómoda, que me deixava nervosa e irritada: sempre que entrava no escritório acompanhado por alguém (homem) com quem tinha mais confiança vinha “mostrar-me”. Dizia “olha aqui, esta é a minha funcionária mais gira” e coisas do género. Comecei a achar que se não deixasse passar umas destas de vez em quando nunca aguentaria um emprego, por isso ignorava. Não sorria, não respondia, mas não evidenciava desagrado, simplesmente ignorava.
Um certo sábado ele ligou-me para casa de manhã. Nunca antes me tinha telefonado e fiquei apreensiva. Explicou-me que iria a Itália em breve e queria que eu o acompanhasse. Respondi que era administrativa e que havia uma pessoa na empresa cuja função era precisamente escolher as coleções, aliás, era ela que o acompanhava sempre nas viagens precisamente por essa razão. Ele observou que o critério era dele, que era ele quem decidia e que desta vez queria que fosse eu. Eu respondi que não percebia nada de camisas nem de tendências nem de coleções, seria um empecilho, não tinha lógica nenhuma ir com ele. Ele ficou irritado, perguntou sarcástico se o meu namorado não deixava. Eu respondi que o meu namorado não tinha nada que deixar ou deixar de deixar, eu não iria porque era despropositado. Ele desligou-me o telefone.
Na segunda feira liguei a avisar as minhas colegas de que não iria mais.
Todas estas histórias são verídicas, todas elas se passaram comigo. Nunca apresentei queixa, sabia que ninguém me daria crédito - afinal estas coisas estavam (e estão) sempre a acontecer.
Na época não tinha família, não tinha ainda filhos para alimentar, pude dar-me ao luxo de pagar para não saber o que se seguiria. Mas e se a minha história fosse diferente? Se eu fosse o único sustento dos meus filhos? Se algum destes animais fosse uma pessoa poderosa numa industria onde eu ficasse condenada a não tornar a trabalhar? Se eu fosse mais ingénua?
Nunca saberei quais as verdadeiras intenções por detrás de cada uma das atitudes destes homens, mas uma coisa sei: fizeram-me mal, fizeram-me sentir desvalorizada, incompetente e suja. Fizeram-me duvidar de mim própria, das minhas capacidades, do meu talento, do meu esforço, da minha culpa. Esta dúvida permaneceu por muitos anos e afetou bastante a minha vida. Não lhes perdoo. Não lhes perdoarei.
Aos 20 anos calei-me. Estava convencida que tinha feito alguma coisa errada, que aquilo era normal, que não podia fazer nada para me defender. Hoje sei que não. Passaram mais de 20 anos e ainda penso nisto de vez em quando.
A culpa não foi minha. 
A culpa não é tua.
Não te cales. 
Nunca mais te cales!

origem: Google

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Another day at the office #2

Pois que tenho a voz grossa, tem vindo a engrossar com a idade mais ou menos ao mesmo ritmo que a cintura. Em interações via telefone, esta singela característica tem estado na origem de algumas situações um tanto ou quanto embaraçosas, mais para o interlocutor do que para mim, que me estou positivamente nas tintas.

Há tempos quis marcar uma manicura de urgência. Queria experimentar fazer gelinho nas unhas. Andei por aí a perguntar e indicaram-me dois sítios aparentemente bons e baratos. Liguei para o primeiro e atende uma senhora:

Ela (arrastada): Tooou?
Eu (hesitante, achei que me tinha enganado): … sim?
Ela (mais arrastada): Siiiiiiim?
Eu: De onde fala?
Ela: Para onde deseja falar?
Eu (já a ficar enervada): Para o sítio tal e tal
Ela: É daqui. Diga.
Eu: Queria marca umas unhas de gelinho…
Ela: Para si? (pausa) 
        ... ou para a sua namorada?
Eu: (pausa)... Para mim...


Resumindo, depois de algumas tentativas conclui-se que ou ela é a profissional mais ocupada do planeta ou não gostou mesmo nada da ideia de ter lá um homem a fazer gelinho.

sábado, 16 de dezembro de 2017

Queres ficar com um sorrisão? Body Combat é a solução!

Não obstante uma penosa falta de jeito para o desporto e uma coordenação motora mais do tipo “movimento aleatório dos membros”, adquiri já depois da idade para ter juízo esta mania de experimentar actividades físicas desafiantes. Nos últimos tempos tenho ido a várias primeiras aulas em busca de uma forma física e saúde melhoradas, mas o que tenho conseguido até agora é mais um acumular de experiências - divertidas para mim mas suponho que traumáticas para quem assiste - do que propriamente uma aprendizagem seja lá do que for.
Depois da miserável experiencia com o personal trainer  – responsabilidade totalmente minha, eu sei – decidi experimentar aulas de grupo. Nas aulas de grupo é tudo mais simples e giro e divertido e ninguém olha para nós (julgava eu).
Acho piada ao género militar: GI Jane, calças de camuflado, top de alças preto, luvas, alta agressividade cheia de pinta, de maneira que só o nome Body Combat motivou-me logo. Depois foi a apelativa descrição – uma aula de fitness divertida e dinâmica, inspirada em artes marciais mas sem contacto físico, à base de movimentos simples e na qual podíamos gastar cerca de 700 calorias - perfeito para mim. Apesar de saber que algures cá dentro vive uma Lara Croft ainda não tive o prazer de a conhecer, pelo que enquanto ela não se mostra, tento manter-me a uma distância segura (para todos) dos desportos de contacto.
Fui a correr.
Nada interessada em repetir a triste figura do ginásio, desta vez comprei umas leggings pretas e vesti uma t-shirt mais decente. Agarrei na toalha turca cor de rosa, nos ténis da mais nova e na garrafa de água e, se bem que ainda muito longe do meu fetichista look de mercenária, lá fui toda enérgica.
Não se deixem enganar, o facto de não haver contacto físico não retira nem um pingo de violência à modalidade. Modalidade não, aquilo é uma recruta. Só o aquecimento causou-me um frissom cardio-respiratório tal que juro, se o peito tivesse uma porta, o meu coração tinha desandado dali para fora furioso.
Mas o pequeno não se pirou. Nem ele nem eu. O resto da aula permanece uma nuvem vaga de movimentos espasmódicos ao ritmo de uma batida sonora alucinada – agora são socos esquerda direita, agora é de baixo para cima, agora troca os pezinhos para trás e para a frente com pequenos saltos, agora mais umas murraças, mais uns saltinhos, saca de pontapés para trás e para a frente e mais uns socos esquerda direita. Eu, coitadinha, bem tento, mas o ritmo é frenético e, para quem assiste, aposto que mais parece uma convulsão com 50 minutos.
Uma vez vi num filme antigo esta frase: “os cavalos suam, os homens transpiram, as senhoras cintilam”. Qual cintilam qual quê! Esta senhora sua e sua bem mais que um cavalo, garanto. As minhas atléticas companheiras e companheiros podem confirmar. Eu quase consigo apalpar a pena nos seus sorrisos encorajadores, verdadeiramente condoídos do meu esforço. Sim, porque eu esforço-me.
Ah, e quando a música acalma e penso que acabou a maluquice e desato a agradecer mentalmente à entidade divina que me impediu de quinar ali, começam as loucas séries de exercícios para os abdominais, coxas, glúteos e braços que depois do afogamento em suor, me deixaram afogada em ácido láctico durante três dias.
Mas a verdade seja dita, apesar de tudo, no final, enquanto nos contorcemos no chão a alongar músculos que nem sabíamos que tínhamos e no dia seguinte vamos desejar nunca ter tido, sentimos uma alegria inexplicável. Deixamos ali muito mais que 700 calorias, deixamos lá todas as irritações, stresses e merdinhas que nos ocupam a cabeça muito mais do que deviam. E talvez um tímpano e um bocado de um pulmão, mas nada que nos faça grande falta.
Fiquei fã.
Experimentem. Vão ver que não estou a aldrabar, é mesmo divertido.
imagem tirada da net

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Para começar, toca a caminhar

“Roma e Pavia não se fizeram num dia”
“Devagar se vai ao longe”
“Com paciência e perseverança, tudo se alcança”
“Quem tudo quer tudo perde”
“A pressa é a mãe do arrependido”
“Tostão a tostão, faz um milhão”
“Depressa e bem, não há quem”
Podia ficar aqui o dia todo, mas acho que já dá para perceberem a ideia: não se matem logo ali ao principio porque não é assim que vão obter mais resultados, correm o risco de se lesionarem e vão acabar por desistir.
Estamos a falar de saúde, mas de melhorar a saúde não de dar cabo dela.

Já aqui disse que foi quando fiquei desempregada que decidi mudar o meu estilo de vida. Nessa altura procurei manter-me intelectualmente activa, habituada que estava a uma certa dinâmica mental, e inscrevi-me numa formação em Lisboa. Moro a cerca de 30 quilómteros da capital, num sítio ermo onde mais depressa encontro um coelho que um autocarro, de maneira que fiz as contas ao tempo e dinheiro que teria de gastar para ir e voltar quer fosse de transportes quer fosse de carro – com portagens, gasolina e estacionamento. A combinação que saía mais vantajosa era ir de carro até à Av.José Malhoa, onde o estacionamento é zona verde, e fazer a pé o percurso restante até ao local da formação, perto do El Corte Inglés. A distância não era grande, cerca de 1,5 quilómetros, mas nos primeiros dias custou-me imenso. Arrastava-me pela rua fora, completamente desorientada – Lisboa é para mim um mistério tão insondável como bater natas em chantilly – e chegava à aula transpirada e exausta, pronta para tomar um duche e voltar para casa. Ainda ponderei o investimento de estacionar à porta do centro de formação, mas era ridículo de tão caro. E assim, durante 3 meses, lá fui e voltei, 3 quilómetros a pé todos os dias.
Como era Inverno caminhava ao frio e à chuva, o que no início também causou grande confusão e desconforto a esta assumida automóveldependente (especialmente devido ao estado lambido, empastado e nojento em que ficava o meu cabelo) mas a verdade é que adaptei o vestuário e o calçado, comprei um pacote de elásticos para que o meu visual se mantivesse em níveis apropriados a um ser humano não electrocutado, e ao fim de pouco tempo já me sabia bem o passeio.

Em suma, para começar em beleza, o melhor exercício que há é mesmo andar a pé. Caminhar é natural, só exige o esforço que quisermos, pode fazer-se em qualquer altura do dia, em qualquer lugar, sem recurso a equipamentos especiais e não é preciso aprender. 
Faz bem às articulações, à disposição, à tensão arterial, à pele, ao ambiente, à barriga, ao rabo... a tudo.
E a melhor parte, é completamente grátis.  




domingo, 10 de dezembro de 2017

Another day at the office

Há uns dias fui ao centro comercial Colombo. Fui por obrigação profissional, porque ninguém me apanha ali por opção. Lido mal com espaços muito grandes e tenho graves problemas de orientação em estacionamentos, de maneira que vou lá o mínimo possível.
Mas fui. Felizmente acompanhada.
Apesar de ter Via Verde no carro, nem sei bem porquê, tirei um bilhete à entrada do estacionamento. Guardei-o religiosamente, ciente da gigantesca probabilidade de lhe perder o tino. Fixei o lugar, tudo direitinho, e quando saímos, Milagre! eu sabia onde estavam ambos – o carro e o bilhete. Dirigi-me a uma caixa automática, abri a carteira e verifiquei que não tinha um tostão. Já a minha amiga sacava da carteira quando reparei que a caixa do lado permitia pagamentos com cartão multibanco. Toda contente lá fui experimentar, nunca tinha utilizado uma máquina daquelas.
Correu bastante bem, foi rápido e viemos embora. Quando estávamos quase no carro lembrei-me que tinha deixado o bilhete pago na máquina. Voltamos atrás, a minha amiga perguntou ao senhor que estava a pagar se por acaso o tinha encontrado e o senhor estendeu-lho.
Agradecemos aliviadas, voltamos para o carro e arrancamos em busca de uma saída. Já disse que detesto aquele centro comercial e esta é uma das razões: podemos morrer de fome e sede e afogar-nos em xixi antes de encontrarmos uma saída. Mas depois de voltas e mais voltas lá conseguimos. Enfiei o bilhete na ranhura e apareceu uma mensagem antipática a dizer vire o bilhete. Nem se faz favor nem nada, só assim: vire o bilhete. E eu virei. Mas a mensagem apareceu de novo: vire o bilhete. E eu virei. E fui virando o bilhete de um lado para o outro, de cima para baixo, mas a máquina continuava casmurra: vire o bilhete. O par de carros atrás de nós começou a compor-se numa fila jeitosa e eu decidi tocar à campainha a pedir ajuda. Enquanto esperávamos os stressados da fila começaram a buzinar, aquelas cenas do costume como se ajudassem alguma coisa. Lá apareceu um rapazinho todo simpático que olhou para o meu bilhete e disse: “minha senhora, isto não é o bilhete, é o recibo”.
Como o recibo? E o bilhete onde estaria então? Na máquina, talvez. Sugeriu então que eu voltasse atrás para ver se o encontrava. Eu olhei para ele com atenção, só para verificar se ele não estava a gozar comigo. Então como poderia eu saber qual era a máquina onde tinha feito o pagamento? Ele nem tinha a noção do milagre que era eu ter encontrado o carro, quanto mais. Além disso, se eu tinha ali o comprovativo do pagamento não bastava para me abrirem a cancela? Aparentemente não.
Estávamos num impasse, de maneira que o rapaz lá mandou os carros andarem para trás, eu tirei o meu do caminho, e eis que a minha genial amiga com memória ao retardador, saca do telemóvel onde tinha uma fotografia do lugar onde tínhamos estacionado.
Subi para o carrinho de golfe com o meu amiguinho novo, percorremos o parque durante o que me pareceu uma meia hora, e lá encontramos a máquina. Procuramos nas ranhuras todas, em cima, debaixo, no lixo, mas nada. Então ele concluiu que talvez o bilhete tivesse ficado preso no interior da máquina, mas para a abrir teria de ser o superior. Comunicou via rádio e lá surgiu então outro carrinho com o dito superior que escarafunchou nas entranhas do aparelho até concluir que dos 27 bilhetes que lá estavam nenhum era meu.
“Teremos de fazer o procedimento de bilhete perdido”, concluiu ele. Aí confesso que a tampa me saltou um nadinha. Pois se eu tinha na mão um comprovativo do pagamento com o dia, a hora e, como tinha pago com o multibanco, o meu nome escrito…
Aí ele ficou baralhado, contactou via rádio outra vez e, enquanto aguardava por um veredicto qualquer, o meu telemóvel tocou. Meti a mão dentro da mala e quando a tirei, oh surpresa! sai-me o bilhete do parque.
O senhor olhou para mim, eu olhei para ele, sorrimos os dois, eu desfiz-me em desculpas e lá fomos no carrinho de golfe de regresso à casa da partida, com ele a dizer piadas sobre outros incidentes que já lhe tinham acontecido envolvendo pessoas idosas.
É claro que, quando inseri o bilhete na ranhura para finalmente sair do parque, o tempo tinha passado – teria de ir fazer novo pagamento.
Não sei se ele tinha mais o que fazer ou se foi da minha expressão, entre o desesperado e a bomba relógio, mas ele abriu a cancela e deixou-nos sair.


quinta-feira, 7 de dezembro de 2017

Se queres continuar a sorrir, do ginásio deves fugir

Quando tratamos como lixo a preciosa jóia que é o nosso querido corpo, é natural que ele amue e se recuse a fazer-nos as mais elementares vontades, como respirar ou fazer cocó. Nós não o tratamos bem, ele não nos trata bem, é assim a vida.
Um vez amuado, desamuá-lo pode ser tarefa deveras complicada, de maneira que há que lhe lançar desafios que ele possa achar divertidos ou então corremos o risco de isto acabar realmente mal.
Quando decidi mudar o meu estilo de vida, em vez de seguir o elementar conselho que acabei de dar (o tal Frei Tomás), fiz precisamente  contrário e cometi o erro mais frequente entre a maioria de nós, malta das decisões drásticas e estúpidas: inscrevi-me num ginásio. Pois então se era para mudar, mudava como deve ser. À bruta.
Ainda nem tinha entrado a porta e já o backdraft me atingia nas ventas.
Para começar, o outfit. Oh, céus, aquilo era um festival de calças de lycra com padrão de camuflado e riscas fluorescentes, de tops justos e mangas à cava, de garrafas high tech com líquidos espumosos, de gadgets electrónicos com auscultadores e música e gráficos para monitorizar sabe-se lá o quê, de mamas hirtas e rabos firmes e salientes, de sapatilhas tecnologicamente mais avançadas que os foguetões da NASA.
E eu?
Bem, eu era mais o género idosa demente foragida da instituição que a mantém cativa há décadas: calças de algodão mais velhas que o meu casamento, t-shirt da Galp branco amarelado com a gola toda cambada, ténis da filha mais nova e toalha turca cor de rosa. O toque de modernidade, esse ficou-se pela garrafa de 33cl de água de Monchique.
Mas fugi, perguntarão? Claro que não, isso seria se fosse esperta. Não fugi. Pelo contrário, não querendo borregar logo ali, afinal a pessoa tem a sua dignidade, apressei-me a cometer o erro número dois: aceitei uma sessão de personal trainer que o ginásio estava a oferecer.
Sem o menor interesse em fazer má figura, já bem bastava o que bastava, perfilei-me junto do pequeno poste de cabeça rapada e cheiro a sovaco, com idade para ser meu filho, que me calhou em sorte (ou em azar) e fiz (ou tentei fazer) tudo o que ele me mandou: subi para a passadeira e corri como uma fugitiva, desci da passadeira e remei como uma condenada, subi para uma bicicleta e transpirei substâncias que, juro, me faziam falta para continuar viva. Torturei as minhas desgraçadas banhocas numa variedade de aparelhos hidráulicos que só existem para nos esfregar na cara quão merdosa está a nossa forma física: o das hérnias nas costas, o da paralisia nos peitorais, o das fracturas nos braços, o das lesões nas pernas. Gemi e lamuriei-me de forma tão pungente que começaram a vir pessoas ver o que se passava. Aí voltei-me para o meu compacto e entusiástico carrasco, dei três gritos e disse-lhe que me ia embora. Ele não esmoreceu, pelo contrário, considerou que eu precisava de motivação extra e espetou comigo num colchão onde me agarrou nos pés e forçou a exercícios daqueles que causam espasmos nos abdominais enquanto berrava “força”, “vai com garra”, “não desistas”.
E, apesar de ter morrido ali por alturas do remo, apesar do pivete a sovaco que afinal acho que era meu, e apesar do rapazinho me tratar por tu, eu não desisti.
Quer dizer, não desisti de viver, mas passaram muitos meses até voltar a meter lá os pés.


quarta-feira, 6 de dezembro de 2017

Para mudarmos as vistas, temos de ser realistas

Mudar de estilo de vida parece complicado, parece uma tão grandiosa trabalheira que desmotiva - prova disso são os últimos 40 anos da minha vida. Mas, na realidade, a internet diz que é bastante simples, afinal não vamos ser atletas olímpicos nem vamos agora de repente fazer um Iron Man, vamos só procurar ter mais qualidade de vida.
Para isso basta termos presentes as 3 regras fundamentais:

1 – Sejamos realistas.
“A partir de amanhã vou deixar de fumar, fazer exercício todos os dias, emagrecer 15 quilos e dizer não ao trigo, ao glúten, ao açúcar, à gordura e aos alimentos processados”. Esqueçam. Sejamos realistas. Escolhamos uma e apenas uma mudança para fazer. É emagrecer? É comer melhor? É fazer exercício? É deixar de fumar? Foquemos-nos no que conseguimos fazer com mais facilidade primeiro e depois logo se vê.

2 - Sejamos realistas
Estabeleçamos metas que estejam ao nosso alcance. Ninguem corre uma maratona em 15 dias. Ninguém perde 35 quilos em 1 mês. Ninguém se torna um especialista em alimentação saudável numa semana. Ah, e ninguém consegue fazer as pernas ficarem mais compridas. Ninguém. Nunca.

3 – Ouviram? Sejamos realistas!
De repente tudo o que comemos demora 4 horas a ser confeccionado? Achamos mesmo que vamos passar a ir ao ginásio diariamente de manhã e à hora do almoço? Subitamente todos os vegetais que consumimos têm de ser biológicos, sustentáveis e comprados na mercearia espectacular que fica a 25 quilómetros da nossa casa? Pá, as mudanças não se fazem sozinhas, planeemos o nosso dia incorporando nele as alterações que decidimos fazer. E sejamos realistas, desenhemos plano que possamos cumprir. Tá?

(vou ali dar uns tabefes numas lentilhas que deixei a demolhar na semana passada. Já desenvolveram coisas com pernas, não tarda nada estão na sala a ver televisão, as malandras).



quinta-feira, 30 de novembro de 2017

Antes de começar, um post a explicar

Aqui entre nós, Newton não foi nenhum génio, só nasceu na época errada. Passou anos a estudar aquilo que, tivesse ele nascido na década de 70, lhe bastava ter passado 24 horas a observar nesta vossa amiga: um corpo parado, se não for exercida sobre ele nenhuma força que o obrigue a mexer-se, tende a permanecer parado.
Tal e qual.
Apesar dos insistentes esforços da minha mãe, que considerava o desporto fundamental para o desenvolvimento dos filhos e nos inscreveu em todas as modalidades que existiam na época, consegui passar anos parada. Parada e convicta de que fazia lindamente, a minha cena era mais intelectual - em boa verdade era mais galhofa, mas pronto. Nunca gostei de transpirar, nunca tive equilíbrio nem pontaria  e nunca tive a chamada "queda" para nada que não fosse para de facto cair (a minha mãe diz que só me sentei com 12 meses e só andei aos 2 anos, por aqui se vê…). Em suma, nunca tive jeito para o desporto - assim mesmo, genericamente, para o desporto como uma grande, complexa, mal cheirosa e absorvente actividade.
Já no que diz respeito ao alimento, desse sou muito amiga. Adoro comer, adoro comer muito e adoro comer bem. Ora, se a pessoa come muito e bem e não se mexe assim tanto acaba por acontecer o que me aconteceu: fiz 40 anos e as banhocas instalaram-se em volta da barriga e das coxas e dos tornozelos como verdadeiros ocupas num prédio abandonado, dispostas a não arredar pé nunca mais. Mas eu era na boa, sem stress, bem disposta, alta auto estima.

Eis senão quando as análises clínicas começaram a vir com valores como colesterol e triglicéridos completamente fora dos parâmetros e comecei a sofrer de problemas de pessoa idosa como fadiga, azia e enfartamento.
Só que eu tinha uma excelente desculpa: falta de tempo. Emprego a tempo inteiro, filhos pequenos e um marido que trabalha muito longe de casa foram durante anos o perfeito alibi, devidamente suportado noutro argumento de peso: rir faz milagres pela saúde, toda a gente sabe, e eu rio tanto que, se começasse a cuidar de mim corria o risco de me tornar eterna, portanto estava-se bem.
Ao contrário da sua fatigada e rechonchuda esposa, o meu companheiro sempre foi um atleta, ou seja, aos 40, enquanto eu implodia lentamente, ele estava cada vez mais saudável, em melhor forma e mais atraente, farto de me ver a arrastar-me e cheio de vontade de me levar com ele nas suas actividades. Mas eu, nada. Firme e irredutivel na minha convicta imobilidade.
Só que os filhos cresceram e um dia, há cerca de 2 anos, fiquei desempregada. De repente tive tempo fisico e mental para olhar para mim, para repensar tudo, reavaliar as minhas opções e o meu futuro. Foi quando decidi mudar. Já que teria de mudar de vida aproveitava e mudava a vida.

Comecei por me inscrever num ginásio, mas aquilo não é para mim. Então comprei uma bicicleta e começamos a dar umas voltas juntos, o marido e eu, actividade que hoje em dia fazemos com muita frequência (sim, mais do que truca truca) e que eu adoro (sim, menos que de truca truca). Quase em simultâneo arranjamos uma cadela e foi aí que descobri o que gosto mesmo de fazer: caminhar. Comecei por fazer umas caminhadas curtas sozinha, depois com ela e, gradualmente, tenho vindo a aumentar as distâncias e a dificuldade dos percursos.
Nos últimos tempos aprendi que quando fazemos alguma coisa por nós próprios sentimos-nos melhor, gostamos mais de nós, andamos mais felizes e atraímos coisas boas para a nossa vida.
Estou de facto mais feliz, sinto-me melhor e a nossa relação de 20 anos está a readquirir uma certa frescura, portanto, confere.
Continuo sem ser nenhuma maluca do desporto, mas estou em bastante melhor forma. Apesar de detestar cozinhar também ando a tentar corrigir alguns maus hábitos alimentares, quase não fumo e, como saímos muito pouco, também bebo menos (não muuuuito menos, mas menos).

Portanto, decidi partilhar aquilo que tenho vindo a descobrir e  como forma de me manter motivada a aprender cada vez mais.

Aqui podem encontrar sugestões de actividades mais ou menos intensas, percursos grandes e pequenos, fáceis ou difíceis, em trilhos ou estradas, para fazer de bicicleta, a pé, nas férias, ao fim de semana, a andar, a correr, com o cão ou sem o cão, em Portugal ou fora daqui, com amigos ou em paz com a Natureza. Pode ser que também encontrem dicas de nutrição e exercícios (devidamente monitorizadas pelo meu parceiro atleta), sugestões de equipamentos, receitas simples e o que mais surja e faça sentido.
Entretanto, perguntem o que quiserem que ficarei sempre feliz em ajudar no que puder.

Vamos a isso?

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de...Santiago #19 - Etapa 4 - Padron - Santiago

Já dizia Einstein, julgo eu, que a diferença entre o Universo e a estupidez é que a estupidez não tem limites. De facto, a minha não tem mesmo.
Pois que decidimos partir de Padrón rumo a Santiago em plena hora de almoço sem sequer almoçamos. A temperatura estava de fornalha e já levávamos cerca de 20 km nas pernas, mas não, não pensamos em nada disto. Para nós era tudo facilidades. E ao princípio até correu bem, só que cerca de 5km depois da partida começaram a doer-me os pés outra vez. Durante os 23 km que se seguiram (sim, porque de Padrón a Santiago são perto de 28km) foi sempre a piorar. Depois dos pés, durante algum tempo também tive dores nos quadríceps mas essas dores pararam e deram lugar a dores nos gémeos. Passado um tempo os gémeos deixaram de incomodar mas surgiu uma dor aguda na base das costas que acabou por desaparecer para ceder passagem a um inchaço violento nos pulsos que acabou por desaparecer para deixar brilhar uma intensa dor nas canelas. 
Em suma, acho que o meu corpo começou a ficar tão cansado que desatou a disparar dores aleatórias na esperança que alguma delas me fizesse parar. Enganou-se. Por esta altura o meu corpo já devia saber com quem está a lidar, se era para chegar a Santiago a pé, pois chegaríamos a Santiago a pé.
É incrível como dependendo do estado de exaustão em que nos encontramos a nossa percepção das distâncias muda tanto. Se os primeiros 20 km feitos em pouco mais de 4 horas nos pareceram um passeio no parque, agora cada 100 metros pareciam uma peregrinação inteira. Mas continuamos. E não paramos. E fomos falando cada vez menos até nos limitarmos a palavrões. Sim. Palavrões. Feios, porcos e maus, sussurrados com a cadência de uma respiração ofegante: "fodaaaaaaaa-seeeeeee, porra, merda, cabrões..." enfim.
À entrada de Santiago, 12 horas depois da partida, mortas e sem bateria nos telemóveis, de cada vez que perguntávamos a direcção da Catedral a alguém as pessoas levantavam as sobrancelhas e, com a mesma expressão chocada com que responderiam se tivéssemos perguntado o caminho para Nova Iorque a partir de Toronto, agitavam a mão na direcção correcta e proferiam um "toooodo recto, tooooodo recto". Posso garantir que naqueles momentos tudo conta, tudo desmotiva, e aquela expressão no rosto das pessoas, oh se desmotiva. 
Era noite escura quando chegamos à entrada do passeio que leva à Catedral. Tinham passado 13 horas desde a partida de Caldas de Reis. Estávamos exaustas, com fome, sede e dores nos pés. Passou um táxi, entramos, demos a morada do Hostel e decidimos deixar a apoteose para o dia seguinte, quando estivéssemos capazes de apreciar o momento.
Na manhã seguinte acordamos muito cedo, tomamos um soberbo pequeno almoço na cidade velha, pedimos a nossa Compostela (essa sim, a verdadeira peregrinação com centenas de pessoas na fila), visitamos Santiago de lés a lés, almoçamos maravilhosamente numa esplanada junto da Catedral, metemos os nossos rabiosques num muy cómodo autocarro FlixBus e rumámos ao Porto onde apanhamos o comboio para Lisboa.
A conclusão:
Foi sem dúvida uma experiência intensa. O desafio físico, o teste dos nossos limites é muito interessante. Somos muito mais resistentes e estes estão sempre muito mais longe do que nós julgamos.
Não teve aquele impacto espiritual que eu esperava, não se acendeu nenhuma luz dentro de mim nem regressei uma pessoa diferente - sou a mesma com menos uns 2 kg, vá. Mas há uma espécie de cordão que nos liga aos outros peregrinos, uma certa dimensão humana proveniente da partilha de um destino, que eu adorei. Adoro pessoas, adoro conversar com pessoas, adoro saber das pessoas. Somos todos tão diferentes, é tão enriquecedor. Como disse Pío Baroja "... o nacionalismo cura-se viajando". Não podia estar mais de acordo.
É mais que certo que repetirei, mas com algumas correcções: gostaria de descobrir um percurso mais bonito, os dois primeiros dias deste deixaram muito a desejar; a distância máxima entre etapas terá de ser de 30 km, nunca mais que isso; acabaram-se os albergues, sempre que possível ficarei em hotéis; e terei de comprar umas palmilhas para as botas. 
Com estas condições acho que para a próxima vou desde o Porto. Ou desde França.

Espero que tenham gostado, se nem por isso, pelo menos que este relato venha a ser útil a alguém que tenha planos para embarcar numa aventura destas.

Obrigada por me terem acompanhado, continuarei por aqui a partilhar o que eu acho sobre coisas. 




quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de... Santiago #18 - Etapa 4 - Caldas de Reis - Padron (Santiago)

Ok, esta coisa do albergue ter a sala de refeições fechada é chata.  Como batemos com o nariz na porta acabamos a tomar o pequeno almoço sentadas na recepção, mas pronto. Fez-se.
Ainda estava noite cerrada quando partimos. Não se via vivalma nas ruas e nós sabíamos tanto para que lado ir como se estivéssemos em pleno deserto do Sahara. Vagueamos um pouco por ali quando reparamos numa mochileira com uma cabeleira tão loira e encaracolada que parecia feita de fusili, a caminhar de mapa numa mão e lanterna na outra, toda rápida e decidida. Fomos atrás dela. Era israelita, cerca de 50 anos, e estava a fazer o caminho com a mãe, que estava cansada e nesse dia faria a etapa de táxi. Explicou-nos a direcção mas não estava para conversas, queria despachar-se, e desandou. 
A nossa ideia era fazer a etapa até Padron e deixar para o dia seguinte o resto do percurso até Santiago de Compostela. Fizemos os primeiros cerca de 20 km num instante. Estava fresco, os meus pés aparentemente estavam a habituar-se à selvajaria a que eu tinha decidido submetê-los nos últimos dias, tudo bem. 
Chegamos a Padron antes da hora do almoço, frescas e bem dispostas. Sentamos-nos num banco de uma praça a comer barritas da Tia Cátia e a beber água, olhámos em volta, olhámos uma para a outra...  e decidimos continuar. Afinal dali a Santiago era só mais uma tirada parecida com a que tínhamos acabado de fazer tão bem, seriam 40 km num dia, já dois dias antes tínhamos feito 38km e sobrevivido. 
Sabíamos que íamos chegar tarde, decidimos não arriscar a partida sem termos a dormida garantida. E fizemos tão bem. Não havia vagas em nenhum dos hotéis, albergues e hostéis para onde ligámos e estávamos mesmo quase a desistir quando por fim conseguimos reservar duas camas num hostel que nem sequer percebemos onde era ao certo. Mas tínhamos consciência de que chegaríamos muito cansadas, essa salvaguarda deixou-nos mais confiantes. 
Demos uma volta em Padron, terra de onde são originários os pimentos de Padron, uns são picantes outros non, como disse um dos alentejanos com quem partilhamos a mesa na véspera, entrámos na bela Igreja, conversamos com uma senhora muito simpática que nos explicou muitas coisas, entre elas o significado da concha dos peregrinos: os apóstolos eram todos pescadores, a concha simboliza o mar. Também, pelo seu formato, serve para comer e para beber, e por isso para partilhar, é este o espírito do peregrino. 
Estava certo, decidimos comprar uma concha para cada uma em Santiago, só então seríamos peregrinas encartadas.
Por volta das 13h partimos rumo a Santiago de Compostela.

terça-feira, 31 de outubro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de...Santiago #17 - Etapa 3- Pontevedra-Caldas de Reis

Dormir num hotel é bom e sabe bem, já sabíamos isso, mas é mordomia com um problema: acordar de manhã é muito mais difícil (a caminha, o silêncio e a privacidade são um vício que nos agarra sem piedade), a saída é muito mais lenta e acabamos por fazer o percurso quase todo debaixo de um sol escaldante.
Pontevedra é uma terrinha muito gira. Toda em pedra, está bem estimada e limpa, nada como a grande parte dos sítios por onde temos passado, o que foi bom para variar. É um ponto de encontro de peregrinos, pelo que de manhã tem um grande movimento de mochileiros e táxigrinos - o nome que os mais profissionais da coisa dão à malta que vai de mãos nos bolsos, aqueles que pagam a alguém para lhes transportar as malas de destino para destino. Este movimento é intenso logo deste a bela ponte velha que junta as margens do rio Lérez, onde fizemos amizade com um super animado e enérgico grupo de seis aveirenses. Claro que aqui as lebres estavam com o fogo no rabo o que levou os nossos companheiros a cedo desistirem de nós.
Continuamos animadas e sozinhas, afinal estavam previstos apenas 21 km, o que era isso para nós, que vínhamos de um sobrevivo dia de 38? Mas assim que o sol se pôs a pique não sei se foi da estafa do dia anterior, se foi da exposição ao calor excessivo resultado da sorna matinal, não sei do que foi mas os meus pés começaram outra vez a doer, as plantas dos pés, o que nos fez abrandar e foi motivo de gozo dos aveirenses que depressa nos ultrapassaram.
É uma etapa com pouca sombra, com bastantes subidas e muito caminho pelo meio de vinhas. A certa altura entramos num café para comprar água, talvez o único por onde passamos nesse dia,  onde estavam duas peregrinas chinesas a carimbar as credenciais e eu aproveitei para carimbar as nossas também. Uma delas olha para a minha, topa o carimbo de um hotel e grita "oh, you been in a hotel? A hotel?" tão alarmada que, fosse o caso de eu não entender o inglês macarronico, ainda teria julgado que ela me estava a avisar que tinha uma víbora a descer-me pelo pescoço. Sim, um hotel, qual é o mal?
Também quase não há fontes neste percurso. E estava tudo tão seco! Todos os ribeiros e riachos, tudo seco. Verdade seja dita que de resto estava tudo absolutamente impecável: água fresca nas garrafas, paisagem bonita, mochila super, bolhas zero, chapéu cinco estrelas, mãos magrinhas. Tudo menos os meus pés. Oh os meus pés, a dor excruciante de caminhar sobre facas, caramba.
Perto de Caldas de Reis vimos um cartaz a anunciar o Albergue Cruzeiro e recordamos que o Miguel, o nosso monitor da Serra do Risco, nos tinha dito que ali teríamos de ficar no Cruzeiro, o albergue municipal é impróprio para consumo, diz ele, nós não sabemos. Agarro no telefone e, fazendo o melhor uso daquele idioma universal que é o portunhol, marco um quarto. Era para quatro pessoas, mas não fazia mal, custava 12€ a cada uma e sempre seria melhor partilhar o espaço com outros 2 que com outros 22.
Lá chegamos, eu de rastos, a Inês fresca como se em vez de 23 quilómetros tivesse caminhado 23 passos (mais uma vez ludibriadas pela internet). Por mero acaso fomos direitas às águas, o sítio onde a tradição manda mergulhar os pézinhos à chegada, mas a simples visão de vários pares de extremidades transpiradas, e quiça micóticas, a demolhar no mesmo tanque fez-nos quase correr para o albergue onde a ausência dos nossos companheiros nos permitiu uma belíssima e bem mais higiénica banhoca.
Pouco depois eles chegaram, a Donatella e o Enrico, um casal de pequenos sexagenários italianos que pareciam dopados. Nós deitadas nas nossas camas, de pernas para o ar, vaselina a absorver nos pés, sem energia nem para alongar as pálpebras e eles, mais ela na verdade, num frenesim: lavou roupa, estendeu-a, desmancharam mochilas, fizeram camas, tomaram um duche e desandaram porta fora. Já nós só saímos um bom bocado depois. Arrastámos-nos pelo passeio, fomos ao supermercado e acabamos abancadas primeiro numa esplanada onde bebemos umas cervejas bem fresquinhas com o Jeremiah, que entretanto apareceu ali sozinho com o seu belo sorriso e um calcanhar todo deitado abaixo, e a seguir, de novo sozinhas, num tasco de aspecto duvidoso mas bastante pitoresco onde comemos umas muito boas tapas acompanhadas de mais umas cañas. 
As mesas corridas facilitam este tipo de interacção e acabamos a partilhar a nossa com um grupo de cinco divertidos alentejanos de Torres Novas - três rapazes e duas raparigas. Vinham de Valença, como nós - aleluia! já começávamos a achar que ninguém partia de tão perto de Santiago como nós. 
Regressamos ao nosso albergue um bocadinho às pressas com receio de acordarmos os nossos parceiros idosos apenas para constatar que eles ainda não tinham chegado. E já o fizeram uma boa meia hora depois de nós, os doidos. Conversamos ainda durante um bocado mas a noitada não os impediu de se levantarem ao toque do nosso despertador, às 5.30 da manhã (já não íamos arriscar outra caminhada à torreira do sol, somos parvas ou quê?) frescos e enérgicos como no dia anterior. 
o Caminho e os amigos italianos


quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de...Santiago #16 - Etapa 2- Porriño-Pontevedra

Outra parte chata de dormir em albergues é a partida no dia seguinte - isto para quem queira, como nós, sair bem antes do nascer do dia. Acordar às 5.30 da matina já não é a melhor sensação da vida, acordar às 5.30h da matina depois de ter dormido ao todo uns 45 minutos, ainda é pior. Acordar às 5.30h da matina, deparar com 20 pessoas a dormir, ter por isso de sair sorrateiramente da camarata, às escuras, com a tralha toda atrás, para nos vestirmos no corredor, é uma trampa que não dá jeito nenhum.
Antes de partirmos para a nossa etapa de 20km rumo a Arcade,  paramos num café para carimbar a credencial, tomar  o pequeno almoço e ver se acordávamos antes de nos fazermos à estrada. Quando íamos a sair entrou um rapaz, peregrino, que nos sorriu com tanta simpatia e disse um good morning tão entusiástico que nos deu energia para as primeiras horas. 
Caminhar de noite não é tão giro como caminhar de dia, mas com as temperaturas a galope por aí acima, é infinitamente mais fresco e rápido. Os bastões são uma ajuda preciosa, evitam o inchaço das mãos e aceleram bastante a passada. 
Ao fim de uma hora de caminhada em que quase não vimos ninguém, fomos apanhadas pelo rapaz do sorriso simpático, que nos acompanhou durante o resto do dia. O Jakub (Jacob) era um polaco de 32 anos, magrito, cabelo loiro cortado à moda do colégio inglês e vinha a caminhar desde Lisboa, de tenda às costas, de onde tinha partido no dia 17 de setembro. Contou-nos que estudou Relações Internacionais em Cracóvia, depois foi completar os Estudos para França, onde viveu durante um ano. Regressado à Polónia abriu uma empresa de publicidade que lhe permitia trabalhar 9 a 10 meses no ano e viajar nos restantes. Confessou-se absolutamente apaixonado por Portugal e pelos portugueses e na Primavera pretende regressar para fazer a Rota Vicentina. Apesar das fortes motivações religiosas, o Jakub tinha o objectivo, que atingiu, de perder 5kg no Caminho. 
Cerca de 15 km depois de partirmos, à chegada a uma terriola chamada Redondela onde paramos para beber um café, comer o bolinho que oferecem sempre aos peregrinos e carimbar a credencial, fomos adoptados por mais um peregrino. Este era um alemão negro, alto, elegantemente atlético com o sorriso mais franco, simpático, saudável e bonito que eu já vi. Chamava-se Jeremiah, o que foi motivo de risota, quer dizer, Jacob e Jeremias? Qual era a probabilidade? 
O Jeremiah contou-nos que aos 27 anos ainda era estudante de medicina porque descobriu tarde  o que queria fazer na vida. Pretende especializar-se em anestesiologia, sonha encontrar uma mulher com quem construir uma vida, nunca tinha andado de avião, aliás, nunca tinha saído da terra dele - uma cidadezinha perto de Frankfurt - e, tal como o Jakub, nunca tinha visto o Oceano antes. Por ter partido do Porto e vindo pelo Caminho da Costa, como o Jakub, a descrição deles do espanto que foi essa primeira visão fez-me desejar muito ter assistido. 
Conversar enquanto se caminha alivia as distâncias. Perto de Arcade concluímos que nos sentíamos espectaculares e decidimos juntar duas etapas numa e seguir para Pontevedra. 
Oh, triste ideia.

Numa das várias paragens que fizemos a partir daí, a sensação que dá é que cada quilómetro se transforma em cinco, passou por nós um senhor já de idade, irritantemente fresco e energético. Meteu conversa connosco e ficamos a saber que era lituano, 75 anos, casado, duas filhas (uma delas a viver nos EUA) e três netos. Tal como o Jakub partira de Lisboa mas quatro dias antes dele.

O Caminho foi-se fazendo, quanto mais calor estava mais difícil. Estavámos mentalmente preparadas para fazer uns 35 km, que acabaram por ser 38, sendo que os últimos 8 ou 10 foram de grande sofrimento para mim, com dores intensas na planta dos pés. A Inês parece que nasceu a andar a pé, estava na maior, mas eu não, fui caminhando cada vez mais devagar e mesmo assim cheguei a Pontevedra com vontade de arrancar os pés, para dizer o mínimo, e em desespero total por uma casa de banho. 
Quando se chega a uma localidade ao fim da tarde, os albergues e sítios baratos já estão todos ocupados. Foi aqui que nos separamos dos nossos amigos - o Jakub seguiu por mais uns quilómetros em busca de um lugar onde pudesse instalar a tenda e o Jeremiah arranjou uma cama num albergue. Nós seguimos para um hotel e pronto. Um hotel com quarto, cama, casa de banho privada, banheira... que saudades!
Nessa noite ainda conseguimos encontrar um restaurante italiano que tinha uma boa sopa de legumes e dormimos que nem umas santas.

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de...Santiago #15 - Etapa 1- Valença-Porriño

Partimos da Gare do Oriente no dia 2 de Outubro ao fim da tarde, no Alfa Pendular, rumo à Campanhã e transbordamos para o IR até Valença do Minho onde chegamos já perto das 11 da noite.

O Balerdi B&B revelou-se uma bela surpresa. O dono, espanhol, estava à nossa espera com um quarto impecavelmente limpo, e foi muito querido porque, quando lhe explicamos que teríamos de deixar a noite paga e prescindir do pequeno almoço porque teríamos de sair por volta das 6.30 da manhã, ele ofereceu-se logo para nos preparar a refeição às 6h e ainda se lembrou de nos carimbar a Credencial do Peregrino, coisa que a nós nem nos tinha passado pela cabeça.

Antes da partida, preocupadas com as bolhas fizemos o que dizem os manuais - protegemos os pés. Com o quê? A internet é prolixa no que diz respeito a este assunto. Há quem use vaselina ou o stick anti - fricção da Compeed (que nós também levamos para o caso). Mais tarde descobrimos que o Biafine também é uma opção muito apreciada. Mas isto de ter um marido ciclista tem as suas vantagens e decidimos inovar com o creme que os ciclistas usam para proteger o rabo das assaduras.
O Balerdi B&B fica mesmo junto do Caminho, o que facilitou ali no arranque, às 6.30 ainda é noite cerrada - as lanternas revelaram-se uma excelente aposta, a luz do telemóvel não é, nem de perto nem de longe, suficiente. Caminhamos durante cerca de duas horas. Em Tui o Caminho tem ali umas partes em que não está assim tão bem sinalizado, o que resultou num desvio de cerca de 2 km, mas lá nos orientamos e seguimos até à primeira paragem para comer e descansar. Tínhamos trazido de Lisboa alguma fruta para o início e umas deliciosas barritas home made, feitas pela grande Chef Cátia Goarmon, que já nos tinham sido preciosas na véspera ao jantar e nos ajudaram muito em todos os outros dias. Não estava ainda muito calor mas já tínhamos bebido alguma água e aí tivemos a primeira surpresa peregrina - junto da fonte onde fomos reabastecer havia uma taça com maçãs. Percebemos depois que é frequente haver fruta para os peregrinos junto das fontes. 
Esta parte do Caminho foi uma desilusão em termos estéticos e olfativos. Anda-se muito por estradas feiosas  (a arquitectura daquela zona não é propriamente bonita), ruidosas e poluídas. A segunda parte é melhor, há mais caminhos de serra, mas para evitar assentar os pézinhos nos inúmeros montes de bosta de cavalo, tivemos de caminhar um bom bocado como elefantes a atravessar o rio, de nenúfar em nenúfar.
Chegamos a Porriño 5 horas e 25 km depois da partida, muito cansadas mas sem dores nem mazelas, direitinhas ao albergue municipal. 
Para se ficar nos albergues municipais é obrigatório ter a Credencial do Peregrino. Não sei se já falei nisto, mas a Credencial pede-se por correio ou, no nosso caso, na Sé de Lisboa e custa 2€. Esta Credencial serve para nos dar acesso aos albergues e, quando carimbada em 2 locais por dia, se cumprirmos um mínimo de 100km a pé ou 200km de bicicleta, ainda nos dá direito à Compostela, o certificado que nos dão na Catedral de Santiago. 
O Albergue paga-se à entrada. Custa 6€ e dão-nos um kit de lençol e fronha descartáveis. Tem duas camaratas com beliches, tudo limpo e arejado, mas, por muito boa vontade que tenhamos e apesar de termos desmaiado ali durante um bocado antes do jantar,  é difícil descansar numa camarata cheia de gente. 
A casa de banho e os balneários estavam bem limpos, existe uma cozinha, para quem leva o equipamento necessário e vai numa de cozinhar as suas refeições, e ainda há uma muito útil zona de lavandaria com estendal.
Uma nota: entre as 16h e as 20h está rigorosamente tudo fechado, não se consegue comer nada em parte nenhuma. A partir dessa hora, os restaurantes estão a abarrotar de gente, é complicado arranjar mesa e impossível comer uma sopa (e nós queríamos tanto uma sopinha!). Como o recolher no albergue é às 22h fica tudo um bocado a correr.
O descanso é fundamental, por isso não ficamos fãs deste modelo de pernoita.