1 - Tinha 20
anos, estava a tirar o curso e a mesada era curta. Desde os dezasseis que fazia
trabalhos pontuais como hospedeira em eventos e aquele foi apenas mais um:
estaria na FIL, no stand de uma marca de automóveis de gama alta. O trabalho
era das 15h às 24h, o tempo inteiro de pé, uma estafa. No último dia o Diretor
de Marketing da marca apareceu perto da hora do jantar - um betinho loiro e
simpático com mais uns oito ou dez anos que eu. Como era o último dia antes de
irmos embora tínhamos de arrumar o stand e encaixotar tudo o que lá estava. A
hora da saída passou. A certa altura ele viu-me apressada porque tinha de ir apanhar
o comboio ou só teria outro às 5.30 da manhã. Perguntou-me para onde ia, eu
respondi, ele observou que ia na mesma direção e ofereceu-me boleia. Eu aceitei
toda contente, estava de rastos.
No caminho, passávamos
em frente ao T Club quando ele me
comunicou que teria de parar ali por um minuto para falar com uma pessoa, coisa
rápida. Eu não gostei da ideia, mas também não achei que fosse grave, ainda
assim chegaria a casa mais cedo do que o normal. Entramos e ele dirigiu-se a
uma mesa num canto, sentou-se e convidou-me a sentar-me ao lado dele - estava à
espera da pessoa, disse. Eu puxei um banco, sentei-me muito hirta na ponta da
mesa e, desconfortável, sem saber bem o que fazer, esperei. Ele pediu um
whiskey, eu não quis nada. O sítio estava quase vazio e eu não tirava os olhos
da entrada, mas não aparecia ninguém. Quase não falei, mas ele não se calava a
falar de si mesmo, das suas conquistas profissionais e desportivas. A certa
altura ele chegou-se para a frente e meteu a mão na minha perna, casualmente,
como se fosse a coisa mais normal do mundo. Eu levantei-me de um salto, balbuciei
qualquer coisa sobre ir à casa de banho e fui quase a correr. Eu tinha o passe,
mas não havia mais comboios e na carteira não tinha um tostão. Fui ter com a
senhora que estava de serviço nos lavabos, a dar o papel higiénico, expliquei-lhe
o que se passava e pedi se me dava uma moeda para usar o telefone, naquela
altura ainda não havia telemóveis. Ela foi muito querida e deu. Liguei para
casa de um amigo e pedi-lhe para me ir buscar. Enquanto ele não chegou não saí
da casa de banho e assim que ele apareceu fugi dali a correr.
Não voltei a ser
contactada para trabalhar para aquela marca.
2 – Decidi então
procurar um estágio remunerado, ainda que pouco. Pedi transferência para o
curso noturno e uns meses depois encontrei o que procurava na área de
publicidade de uma revista.
Tinha uma diretora
muito simpática e disponível que me levava a todas as reuniões e nunca
levantava obstáculos à minha hora de saída porque tinha de ir para as aulas. Eu
estava a aprender e a gostar, assim passaram 3 meses.
O Diretor do
jornal do qual a revista era o suplemento tinha um gabinete envidraçado que
ficava de frente para a minha mesa. Além dos bons dias nunca troquei mais uma
palavra que fosse com ele. Até à manhã em que ele me chamou ao seu gabinete. E
eu fui, claro.
Ele não se levantou
quando eu entrei nem me convidou a sentar, de maneira que eu fiquei de pé de um
lado a secretária e ele recostado na sua cadeira, do outro.
Perguntou-me se
eu estava a gostar do trabalho, eu respondi que sim. Ele perguntou se eu
estaria interessada em fazer mais alguma coisa, em ter mais responsabilidade. Eu
respondi que estava a estudar, se a função fosse compatível, claro que sim. Ele
observou que isso só dependia da minha vontade, que antes de me dizer do que se
tratava teríamos de almoçar juntos para ele me conhecer melhor. Sem compreender
quais as intenções do homem e recusando-me a cair na mesma esparrela outra vez,
disse-lhe que responderia ali mesmo ao que ele perguntasse, não seria
necessário almoçarmos. Ele respondeu que naquele momento não tinha tempo, mas
depois então falávamos. No dia seguinte de manhã a minha diretora agradeceu
muito, mas já não iam necessitar mais dos meus serviços.
3 – Meses mais
tarde, como já frequentava o turno da noite, arranjei através de um professor um
emprego em part time durante o dia, coisa mais séria, de pessoa crescida. Era
perto de casa, num escritório que importava camisas italianas e as distribuía para
lojas. Eramos 4: outras duas raparigas, eu e o dono, um trintão/quarentinho com
a mania que era bom. A minha função era administrativa: atendia telefones,
encaminhava os clientes para a sala de reuniões, etc. nada de muito complexo.
Ao fim de pouco tempo ele começou a fazer uma coisa altamente incómoda, que me
deixava nervosa e irritada: sempre que entrava no escritório acompanhado por alguém
(homem) com quem tinha mais confiança vinha “mostrar-me”. Dizia “olha aqui, esta
é a minha funcionária mais gira” e coisas do género. Comecei a achar que se não
deixasse passar umas destas de vez em quando nunca aguentaria um emprego, por
isso ignorava. Não sorria, não respondia, mas não evidenciava desagrado,
simplesmente ignorava.
Um certo sábado ele
ligou-me para casa de manhã. Nunca antes me tinha telefonado e fiquei
apreensiva. Explicou-me que iria a Itália em breve e queria que eu o acompanhasse.
Respondi que era administrativa e que havia uma pessoa na empresa cuja função
era precisamente escolher as coleções, aliás, era ela que o acompanhava sempre
nas viagens precisamente por essa razão. Ele observou que o critério era dele,
que era ele quem decidia e que desta vez queria que fosse eu. Eu respondi que
não percebia nada de camisas nem de tendências nem de coleções, seria um
empecilho, não tinha lógica nenhuma ir com ele. Ele ficou irritado, perguntou
sarcástico se o meu namorado não deixava. Eu respondi que o meu namorado não
tinha nada que deixar ou deixar de deixar, eu não iria porque era despropositado.
Ele desligou-me o telefone.
Na segunda feira
liguei a avisar as minhas colegas de que não iria mais.
Todas estas
histórias são verídicas, todas elas se passaram comigo. Nunca apresentei queixa,
sabia que ninguém me daria crédito - afinal estas coisas estavam (e estão)
sempre a acontecer.
Na época não
tinha família, não tinha ainda filhos para alimentar, pude dar-me ao luxo de
pagar para não saber o que se seguiria. Mas e se a minha história fosse
diferente? Se eu fosse o único sustento dos meus filhos? Se algum destes
animais fosse uma pessoa poderosa numa industria onde eu ficasse condenada a
não tornar a trabalhar? Se eu fosse mais ingénua?
Nunca saberei
quais as verdadeiras intenções por detrás de cada uma das atitudes destes
homens, mas uma coisa sei: fizeram-me mal, fizeram-me sentir desvalorizada,
incompetente e suja. Fizeram-me duvidar de mim própria, das minhas capacidades,
do meu talento, do meu esforço, da minha culpa. Esta dúvida permaneceu por muitos anos e afetou
bastante a minha vida. Não lhes perdoo. Não lhes perdoarei.
Aos 20 anos calei-me. Estava convencida que tinha feito alguma coisa errada, que aquilo era normal,
que não podia fazer nada para me defender. Hoje sei que não. Passaram mais de 20 anos e ainda penso nisto de vez em quando.
A culpa não foi
minha.
A culpa não é tua.
Não te cales.
Nunca mais te cales!
origem: Google |