segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Indo eu, indo eu a Caminho de...Santiago #19 - Etapa 4 - Padron - Santiago

Já dizia Einstein, julgo eu, que a diferença entre o Universo e a estupidez é que a estupidez não tem limites. De facto, a minha não tem mesmo.
Pois que decidimos partir de Padrón rumo a Santiago em plena hora de almoço sem sequer almoçamos. A temperatura estava de fornalha e já levávamos cerca de 20 km nas pernas, mas não, não pensamos em nada disto. Para nós era tudo facilidades. E ao princípio até correu bem, só que cerca de 5km depois da partida começaram a doer-me os pés outra vez. Durante os 23 km que se seguiram (sim, porque de Padrón a Santiago são perto de 28km) foi sempre a piorar. Depois dos pés, durante algum tempo também tive dores nos quadríceps mas essas dores pararam e deram lugar a dores nos gémeos. Passado um tempo os gémeos deixaram de incomodar mas surgiu uma dor aguda na base das costas que acabou por desaparecer para ceder passagem a um inchaço violento nos pulsos que acabou por desaparecer para deixar brilhar uma intensa dor nas canelas. 
Em suma, acho que o meu corpo começou a ficar tão cansado que desatou a disparar dores aleatórias na esperança que alguma delas me fizesse parar. Enganou-se. Por esta altura o meu corpo já devia saber com quem está a lidar, se era para chegar a Santiago a pé, pois chegaríamos a Santiago a pé.
É incrível como dependendo do estado de exaustão em que nos encontramos a nossa percepção das distâncias muda tanto. Se os primeiros 20 km feitos em pouco mais de 4 horas nos pareceram um passeio no parque, agora cada 100 metros pareciam uma peregrinação inteira. Mas continuamos. E não paramos. E fomos falando cada vez menos até nos limitarmos a palavrões. Sim. Palavrões. Feios, porcos e maus, sussurrados com a cadência de uma respiração ofegante: "fodaaaaaaaa-seeeeeee, porra, merda, cabrões..." enfim.
À entrada de Santiago, 12 horas depois da partida, mortas e sem bateria nos telemóveis, de cada vez que perguntávamos a direcção da Catedral a alguém as pessoas levantavam as sobrancelhas e, com a mesma expressão chocada com que responderiam se tivéssemos perguntado o caminho para Nova Iorque a partir de Toronto, agitavam a mão na direcção correcta e proferiam um "toooodo recto, tooooodo recto". Posso garantir que naqueles momentos tudo conta, tudo desmotiva, e aquela expressão no rosto das pessoas, oh se desmotiva. 
Era noite escura quando chegamos à entrada do passeio que leva à Catedral. Tinham passado 13 horas desde a partida de Caldas de Reis. Estávamos exaustas, com fome, sede e dores nos pés. Passou um táxi, entramos, demos a morada do Hostel e decidimos deixar a apoteose para o dia seguinte, quando estivéssemos capazes de apreciar o momento.
Na manhã seguinte acordamos muito cedo, tomamos um soberbo pequeno almoço na cidade velha, pedimos a nossa Compostela (essa sim, a verdadeira peregrinação com centenas de pessoas na fila), visitamos Santiago de lés a lés, almoçamos maravilhosamente numa esplanada junto da Catedral, metemos os nossos rabiosques num muy cómodo autocarro FlixBus e rumámos ao Porto onde apanhamos o comboio para Lisboa.
A conclusão:
Foi sem dúvida uma experiência intensa. O desafio físico, o teste dos nossos limites é muito interessante. Somos muito mais resistentes e estes estão sempre muito mais longe do que nós julgamos.
Não teve aquele impacto espiritual que eu esperava, não se acendeu nenhuma luz dentro de mim nem regressei uma pessoa diferente - sou a mesma com menos uns 2 kg, vá. Mas há uma espécie de cordão que nos liga aos outros peregrinos, uma certa dimensão humana proveniente da partilha de um destino, que eu adorei. Adoro pessoas, adoro conversar com pessoas, adoro saber das pessoas. Somos todos tão diferentes, é tão enriquecedor. Como disse Pío Baroja "... o nacionalismo cura-se viajando". Não podia estar mais de acordo.
É mais que certo que repetirei, mas com algumas correcções: gostaria de descobrir um percurso mais bonito, os dois primeiros dias deste deixaram muito a desejar; a distância máxima entre etapas terá de ser de 30 km, nunca mais que isso; acabaram-se os albergues, sempre que possível ficarei em hotéis; e terei de comprar umas palmilhas para as botas. 
Com estas condições acho que para a próxima vou desde o Porto. Ou desde França.

Espero que tenham gostado, se nem por isso, pelo menos que este relato venha a ser útil a alguém que tenha planos para embarcar numa aventura destas.

Obrigada por me terem acompanhado, continuarei por aqui a partilhar o que eu acho sobre coisas. 




2 comentários:

  1. Foi uma inspiração para o meu Caminho. E devo dizer que o recomendei a quem fez comigo. Obrigada

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