quarta-feira, 26 de julho de 2017

Das anomalias

Gosto de palavras. Substantivos, verbos, sinónimos, complementos, trocadilhos, metáforas, duplos sentidos, palavrões.
A palavra "polissemia", por exemplo, é bonita, tem uma sonoridade colorida e traduz a capacidade de um vocábulo de ter múltiplos significados sem se tornar vago ou impreciso. Verbos irregulares também são fixes, são verbos diferentes, conjugam-se de formas diversas, mas são verbos na mesma. O que seria a nossa vida sem o verbo "rir", por exemplo?
Também simpatizo com a palavra "anomalia"- em primeiro lugar, porque sempre gostei da pluralidade, permite-nos sermos únicos e exclusivos, mas também porque, de termo comummente utilizado em referência a uma anormalidade normalíssima, passou a tema controverso, daqueles capazes de tirar esqueletos dos armários, o que é sempre positivo.

Considera-se anómalo o que é avesso à normalidade, sendo a "normalidade" consubstanciada na tendência geral apresentada por uma determinada população. Por conseguinte, uma vez que tanto quanto se sabe a maioria dos habitantes do planeta não é homossexual, a homossexualidade será de facto, uma anomalia. Tal como um QI de 200. Ou memória eidética. Ou unhas encravadas.

De onde terá vindo essa ideia espantosa de moldar cada um de nós numa bolinha de esferovite redonda e indiferenciada para ser amontoada junto com todas as outras num saquinho de plástico ridículo e inútil?

É claro que a norma tem os seus encantos, ajuda o mundo a ser previsível, a organizar-se, a planear, mas não é a norma que o faz andar para a frente, são as "anomalias", são os dentes da roda que a fazem movimentar-se. Sejam eles como forem.
Há anomalias em todos nós. Todos.

Quem diria que cabelos ruivos, epilepsia, albinismo ou verrugas na pele já foram considerados marcas do diabo? Hum?
E o canhotismo? Estima-se que cerca de 20% da população sinta atracção pelo seu próprio género, mas apenas 10% seja canhota, sendo que essa percentagem é inferior no caso das mulheres, o que torna esta anomalia ainda mais anormal (aposto que julgavam que havia mais canhotos que homossexuais).
Durante séculos os canhotos foram considerados anormais, bruxos, lerdos, agressivos e problemáticos. Fomos discriminados, torturados e associados ao diabo e ao pecado. Ainda hoje é comum a utilização de expressões como "cruz canhoto", "acordou para o lado esquerdo" ou "tem dois pés esquerdos"para ilustrar coisas más. A minha avó nem sequer a palavra "canhoto" dizia.
Se dependesse dos zelosos defensores da "ordem natural" ainda hoje se "corrigiam" as crianças amarrando-lhes a mão esquerda, batendo-lhes, ofendendo-as, castigando-as por serem inábeis, sinistras, desajeitadas, tinhosas. tudo verdade, como é sabido.
Uma mera característica, dizem hoje os especialistas.

Quando reputados médicos decidem classificar como "anomalia", no sentido pejorativo atribuído a um funcionamento deficiente, uma simples característica como a homossexualidade, que nem sequer é das mais raras (por exemplo, há muito menos pessoas com seis dedos nas mãos), somos forçados a pôr em causa a sua credibilidade cientifica.

Ora pensem no Leão. Não é à toa que o Leão é o rei da selva, ele é o rei porque é um caçador firme, possante e infalível. Um líder com provas dadas.
Agora imagine-se que o leão decide um belo dia dedicar-se à pesca. Ele não sabe pescar, nem sequer sabe se gosta de peixe - nunca experimentou - mas como é bom a esventrar gnus e no fundo a pesca também é uma forma de caça, o leão desata a debitar opiniões sobre técnicas e anzóis e canas e isco.

As opiniões do leão são apenas opiniões, claro, mas os outros animais da savana não sabem disso - escutam-no reverentes, presumem que ele, personalidade tão versada nas artes da caça, não será estúpido ao ponto de, tendo perfeita consciência do alcance das suas palavras, emitir juízos infundados e irresponsáveis, susceptíveis de colocar em causa o bem estar dos pescadores - profissionais, desportivos ou meros simpatizantes, bem como a sua própria credibilidade.

Mas talvez ele seja mesmo um pouco tolo, e como consequência das suas irreflectidas palavras, o Leão perde a admiração dos outros animais da savana e passa a ser seguido por uma matilha informe de cãezinhos minúsculos, complexados, irritantes e nervosinhos, que desatam a ladrar histéricamente e a morder os calcanhares de todos os que lhes passam à frente, porque são medrosos e insignificantes e julgam que se afirmam se forem muito agressivos.

Eu compreendo o medo quando vem da ignorância. O ancestral medo dos raios, das trovoadas, da bruxaria e de outros fenómenos difíceis de explicar. Acontece que a ciência, da qual os médicos são arautos, tal como já entendeu os cabelos encaracolados e o pé chato, já entendeu a homossexualidade há uma anormalidade de tempo. Sim, há alguns 30 anos.
Já não há desculpa.






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